Em 1935, Fernando Pessoa (1888-1935) escrevia uma longa carta a Adolfo Casais Monteiro – poeta, professor, director da revista literária Presença – onde explicava: “desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram” e qual a génese dos seus heterónimos. Contava que duas décadas antes, “num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda surgiu a ‘Ode Triunfal’ (1914) de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem”. Hoje, a frase podia ser apresentada no Polígrafo SIC, qual publicação de uma rede social, e facilmente se concluiria que se tratava de uma mentira. A tão famosa obra de estreia do heterónimo foi escrita à mão em várias fases, como comprovam manuscritos encontrados muitos anos depois. Mas porquê então esta associação à máquina de escrever?
Obras Literárias e Máquinas de Escrever Clássicas
Muitos escritores contemporâneos de Fernando Pessoa já usavam o teclado das máquinas para registar as suas ficções. Tolstoy (1828-1910) escreveu à mão “Guerra e Paz” (1865) e “Anna Karenina” (1877) e posteriormente ditou os romances à filha, que os escrevia numa Remington understroke, uma máquina em que apenas se via o que se estava a dactilografar depois de quatro ou cinco linhas já escritas.
Franz Kafka (1883-1924) tinha uma Oliver 5, um objecto de estrutura invulgar que poderia, na imaginação do autor checo, ser parecido com um órgão de uma catedral ou um animal com várias antenas capaz de se metamorfosear.
Virginia Woolf (1882-1941) marcou a literatura inglesa do início do século XX com a ajuda de uma Underwood portátil.
A Modernidade de Álvaro de Campos
Tac-tac-tac eram as batidas do coração de Álvaro de Campos, o engenheiro naval que não dissociava a Indústria da Modernidade. As máquinas, em geral, ajudavam-no a sentir e clarificavam os seus pensamentos. No poema “Ode Triunfal”, deixa-se levar pelos sentidos ao ver motores e movimentos, ao ouvir barulhos e agitação dentro de uma fábrica. Talvez por isso, e de forma a dar mais consistência ao seu heterónimo, atribuindo-lhe mais urbanidade e tecnologia, Fernando Pessoa terá dito que a “Ode Triunfal” tinha sido escrita à máquina, porque as máquinas eram “grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força“. Ou talvez a memória o enganasse. Tendo sido aquele período (1914-1915) de profícua produção, em que escreveu linhas e linhas de poemas, talvez muitas delas registadas no tac-tac-tac de uma Remington, Royal ou Underwood, talvez tenha confundido o que escreveu aonde. De uma forma ou de outra, sabemos que a máquina de escrever sempre acompanhou Fernando Pessoa.
Durante a sua vida, o poeta trabalhou em inúmeras firmas lisboetas, maioritariamente executando funções de correspondente estrangeiro, o que hoje é considerado um tradutor, mas também como jornalista e redactor publicitário. Dessa forma, sempre teve acesso às máquinas de escrever, que aproveitava para usar para fins pessoais, fosse para corresponder com amigos, ou para materializar os seus pensamentos em poemas.
As Royal de Fernando Pessoa
Como correspondente estrangeiro na empresa Moitinho de Almeida & Cia. Comissões, onde trabalhou entre 1924 e 1935, e na Sociedade Portuguesa de Explosivos, onde prestou serviços de 1934 e 1935, Fernando Pessoa usou sempre uma Royal. Na primeira, munia-se de uma Royal 10, que pode ser vista na Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, Lisboa, e na segunda, utilizava uma Royal H, vendida em leilão em 2012, por €26.000.
A Royal 10, a par da Royal 5, foi um dos modelos mais importados de toda a marca. Com produção iniciada em 1913, este modelo de mesa pesava cerca de 15 kgs e a sua primeira versão tinha painéis laterais abertos para se poder ver a estrutura mecânica. A que se encontra na Casa Fernando Pessoa é um número de série da segunda versão, produzida a partir de 1915, com vidro a tapar as aberturas laterais. A Royal H foi um modelo iniciado em 1934, mais comprado por empresas do que por particulares e a que Fernando Pessoa, habitualmente, usava na Sociedade Portuguesa de Explosivos, pertence hoje ao diplomata brasileiro e autor de Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia, José Paulo Cavalcanti Filho.
A máquina de escrever não desempenhou apenas um papel útil ao trabalho mais, ou menos, criativo de Fernando Pessoa, mas também inspirador, como poderemos ver no próximo artigo.
(Artigo escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990)
Fontes
- 7 livros inesquecíveis de Fernando Pessoa in blog Estante Virtual (créditos da imagem de destaque)
- Biografia de Álvaro de Campos in e biografia
- Carta a Adolfo Casais Monteiro in Arquivo Pessoa
- Fernando Pessoa e os Objectos in A Viagem dos Argonautas
- Lisboa no Século XX in blog Estes Publicitários
- Lugares, Trajectos e Afectos de Pessoa in Casa Fernando Pessoa
- Ode Triunfal in Arquivo Pessoa
- Ode Triunfal | Álvaro de Campos in Deus me Livro
- Royal 10 in Typewriter Museum
- Turning Pages: Fascinating stories of famous writers’ typewriters in The Sidney Morning Herald
- Virginia Woolf Typewriter in New York Public Library
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